domingo, 26 de dezembro de 2010

Fala, Memória: Minha bênção, meus pais…

A BÊNÇÃO II No dia em que saí de Areia Branca para morar em Natal senti, ainda lembro, um aperto no coração. Emudeci e meus olhos encheram-se de lágrimas. Embora não fosse lei lá em casa que os filhos homens não podiam chorar, chorei escondido. Eu tinha razões de sobra para abrir o berreiro: vinha para uma cidade grande e desconhecida, morar na casa de uma tia e uma avó, nem matrícula eu havia feito no colégio. O sonho era estudar no Colégio Sebastião Fernandes, mas era tudo incerto para um menino de 10 anos que deixava a casa paterna, o paraíso azul do mar de Areia Branca e suas salinas brancas. Minha mãe e meus irmãos me acompanharam até o carro que me traria a Natal. Abracei-os sem dizer uma única palavra, os dentes trancados. Se pronunciasse um singelo adeus, o mar da minha cidade inundaria tudo.
Meu pai olhava-me firme, vigilante, feliz pela escolha que fez. No fundo ele sabia que a minha vinda seria a antecipação da vinda dele e do resto da família. Tem sido assim com muita gente. Meu pai queria dar aos filhos a possibilidade de descobrir novos horizontes, ter outras perspectivas...

Meus pais tinham um projeto familiar. A educação dos filhos seria o principal objetivo. Eles decidiram, com coragem, arriscar a sorte. Vim primeiro, e eles quatro anos depois, já com os outros irmãos, com exceção de Rodrigo, o caçula, que nasceu, anos mais tarde em Natal. Sábia escolha dos meus pais...
Não éramos pobres para os padrões da cidade, mas vivíamos apertados. Dinheiro curto, contado. Minha mãe, além de cuidar dos filhos, costurava pra fora. Meu pai dividia o dia em três partes, trabalhando pela manhã na Prefeitura, à tarde num escritório de contabilidade e, à noite, estudava em Mossoró, primeiro na União Caxeiral, depois na UERN. Terminava as aulas às dez da noite e voltava. Às vezes perdia o ônibus e dormia em Mossoró ou na casa de Tia Mazé ou no Hotel de Diran Amaral, que gentilmente lhe dava abrigo. Tempos difíceis, mas bons. Tempos felizes, em que eu e meus irmãos fazíamos várias tarefas de casa. Passar o pano no mosaico, lavar alguma louça, aguar as plantas, observar se a caixa d´água estava cheia e outras coisas mais. Isso nunca nos diminuiu e nossas mãos nunca caíram por causa disso.

Quando papai e mamãe me levaram até a casa de Toinho Rodrigues, que me trouxe para Natal de carona, meu pai, que é sempre alegre e adora falar, estava silencioso. Minha mãe me cobria de recomendações. Ainda hoje tento imaginar o que eles verdadeiramente sentiam naquele dia. Talvez um misto de medo, alegria, apreensão, não sei... Lembro que eu não enxergava nada à minha frente, os olhos cegos de lágrimas. Lembrava a história que minha avó contava, dos três irmãos que abandonam o lar em busca de fortuna. A todos eles o pai perguntou na hora da despedida: - Você prefere muito dinheiro e minha maldição ou pouco dinheiro e minha bênção? Apenas o mais novo escolheu a bênção e pouco dinheiro, alcançando a felicidade.

Guardo na parede da memória quando, antes de entrar no carro, pedi a bênção a meus pais. Eu precisava ouvir de seus lábios a fórmula protetora do "Deus te abençoe, meu filho". E mais que isso, eles me abraçaram e recebi, deles, muitos beijos e conselhos. Ali, na inocência de um menino de dez anos, vi o quanto era amado e era por amor que nos separávamos. Eu queria que aquele instante em que nos abraçamos se eternizasse. Queria que aqueles minutos ali juntos fossem para sempre. Eu perpetuei em mim aquele momento.

Hoje, as velhas fórmulas caíram em desuso, já não se pede a bênção a ninguém. Mas ainda hoje tenho o hábito de pedir a bênção a meus pais. Me faz um bem danado o poder mágico dessa invocação. Todas as noites, antes de dormir, eu gritava do meu quarto: "A bênção!". Só calava depois que ouvir o "Deus te abençoe". As três palavras pareciam com o pano que nossa mãe estendia sobre as redes, nos protegendo dos respingos das chuvas, na casa de telhado alto. A benção recebida era uma graça pacificadora, um sonífero sem droga. É muito bom ouvir um "Deus te abençoe, filho".

Hoje relaxei com os costumes da família, não ensinei direito aos meus filhos a pedirem a bênção. Mas sempre que os vejo, silenciosamente os abençôo. É, talvez, uma pretensão achar que posso abençoar alguém, mas em verdade eu peço ao Pai que lhes abençoe. A frase é: "Deus te Abençoe, Meu/Minha Filho(a)".

Meses atrás meu filho Pedro Henrique, de 20 anos, estava de saída quando estendeu a mão e disse: "A bênção, pai!" Espantado com aquilo que acabara de ouvir, pronunciei o "Deus te abençoe" e a ordem do mundo se refez, uma ordem em que se recompõem os elos com o passado, sem nenhuma culpa pelas formas que o presente assume. Não sei o que meu filho sentia, nem em que pensava quando me pediu a bênção. Não sei. Talvez tenha lembrado a história dos três irmãos, a que minha avó me contava, e que contei para ele. O fato é que fiquei feliz, muito feliz.

Miguel Josino Neto, areia-branquense. Procurador do Estado do RN (mjosino@uol.com.br)

· Artigo extraído do Jornal de Hoje, Natal (RN).

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Jornalista do jornal O Mossoroense, redator do noticiário matinal “Costa Branca em Notícias”, da Rádio Costa Branca – FM 104,3 de Areia Branca (RN), onde aos domingos apresenta o programa de variedades “Domingão da 104”

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